7.15.2005

João Pinheiro

Depois de termos passado férias juntos em anos imemoriais de Algarve e de termos partilhado tricículos… Achei estranho chegar ao meu primeiro dia na Escola primária e ver caras conhecidas como a do João. Ele corria rápido e passava os intervalos a jogar futebol. Por oposição eu tive de aprender a correr e sempre odiei jogar futebol. Adorava todos os outros jogos mas não conseguia ver o futebol como muito mais do que uma humilhação pública de uns para que outros se exibissem. Baseado quase exclusivamente na formação das equipas eu conseguia prever o resultado com uma exactidão admirável. E no um para um ver o João a fintar e humilhar os nossos amigos era um perfeito desprazer. Apesar da imensa pressão que senti para jogar esse jogo, que por estas bandas é sinónimo de popularidade, eu aguentei o barco com tudo o que não tinha a ver com o acto de driblar, fintar, centrar, rematar… As poucas vezes que aceitei jogar senti uma necessidade incontrolavel de derrubar quem me fintava. Eu gostava do passe e das trocas de bola mas quando se jogava futebol essas coisas não aconteciam. Os golos resultavam sempre com uma iniciativa individual de um qualquer leve e ágil como o João. Nunca tive sentimentos de inferioridade física relativamente a ele por uma simples razão: volta e meia ele irritava-me e eu ameaçava-o de punhos fechados enquanto ele fugia de mim como o diabo da cruz. Aliás esse (des)equilíbrio foi mantido até bastante tarde.

Nas férias grandes da segunda classe o João e eu sonhavamos com uma rapariga que era a paixão da turma toda: a Carmo. Numa quebra espontânea de simetria todos os rapazes da nossa turma se apaixonaram pela Carmo e isso foi uma coisa que estranhamente criou bom ambiente. Ainda me lembro dos concursos de cabeçadas na mesa… só para tentar provar quem gostava mais dela. O vencedor foi o João Pedro “gordo” que no meio de uma quase loucura se condenava a si mesmo a uma penitência de que certamente se arrepende.

Mas eu e o João numa dessas férias de 3 meses falavamos sobre a Carmo e em como as saudades e as memórias que tinhamos dela só tornavam os sentimentos mais intensos e nítidos. Depois de termos passado horas a jogar spectrum e de o João me mostrar como conseguia apanhar com a boca um aperitivo depois de o atirar ao ar, montamos uma cama cor de laranja que só me fazia lembrar uma prancha de windsurf daquelas que o meu avô guardou na garagem durante décadas. Fomos dormir e conversar sobre a ideia de saudade e de “Carmo” sem saber muito bem que isso significava.

Durante o ano, quando ia lá passar uma tarde, notava que ele fazia os trabalhos todos em meia hora enquanto eu passava tardes inteiras a faze-los e a olhar para o tecto. Para mim fazer os trabalhos era quase o mesmo do que estar à secretária entediado e sabendo que tinha uma obrigação para cumprir. E o meu prazer era esse: saber o que tinha de trabalhar sem o fazer. O João tinha a praceta e uma vontade imensa de acabar os trabalhos para ir correr e jogar à bola.

Ele também tinha um cofre. Nesse cofre guardava dinheiro e objectos menos aceitaveis. Lembro-me que um dos seus maiores segredos era o preservativo que guardava lá. Nunca percebi se o tinha apanhado usado e depois lavado ou se tinha aberto uma embalagem nova… Mas oque importa é que nós com 8 anos conversavamos em grandes grupos sobre esse preservativo. O tamanho… Mas como seria possível ter uma pila tão grande? Será que isso dava algum jeito para andar e correr? Será que crescia assim tanto? Perguntas e perguntas a que iamos tentando responder…

Um dia fomos ao circo e acabamos em casa do João em frente a uma folha grande de papel sem conseguirmos expressar o que tinhamos imaginado enquanto viamos os trapezistas. Nesse dia percebi que a persistência é crucial na criatividade porque ele desistiu imediatamente.

O João tinha um irmão com o meu nome: o Manel Pinheiro. Tratava-o muito mal. Eu não percebia porquê mas um dia em Andorra numas férias de Neve lembro-me de chorar secretamente enquanto o Manel gritava e chorava para o João e lhe perguntava porque é que não gostava dele. A música veio mais tarde resolver essa questão.

Para além destas memórias que ainda guardo do João falta falar das “bocas irónicas” e desagradaveis que mandava quando fomos para a escola preparatória, da bateria que ele aprendeu a tocar com o pai dele, das bandas, do bar Rookie onde eu nunca fui, da Pingas que se apaixonou por ele depois de uma jogo de “bate pé” quando eu gostava secretamente dela. Finalmente o João foi para letras e eu para ciências. Perdi o contacto. Só o via de quando em quando no liceu. Nunca falamos de nada. Nos anos de faculdade voltamos a falar uns bocados nas férias que passamos perto da Tavira com as nossas famílias. Nunca aconteceu nenhum tipo de partilha ou simpatia até ao dia de ontem em que conversamos sobre os nossos percursos e ele me confessou que é a personificação de Portugal e dos seus medos e problemas. Tirou filosofia. Quer dedicar-se á música. Escreve trabalhos académicos com facilidade mas tem vergonha da escrita criativa:
- Português é uma língua mais adequada à poesia do que à filosfia… - diz ele tom de desculpa apesar de ter um certo fundo de verdade. Atirei-lhe uns títulos de um livros desses que viveram comigo. Livros que amei e amo. Livros que se degradam quando se abrem. A leitura da filosofia e da poesia destroi o livro que a contem. Falamos do Francisco. Esse sim foi morto pelo absurdo absoluto. Fica assim o registo de mais um morto-vivo que me falou da morte.

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